
Conhecendo poetas: Rafael Pelissari
Nascido no dia em que é comemorado o dia nacional do livro, 29 de outubro, Rafael Pelissari inequivocamente foi absorto pela magia proveniente das páginas impressas com palavras; um amante de livros em sua universalidade - do conteúdo, da forma e da função. Já colecionava livros até mesmo antes de se alfabetizar, e, ainda criança com um mimeógrafo e autodidata, iniciou seu aprendizado como artesão de livros.
A forma magistral com a qual Rafael se expressa em sua poesia é ao mesmo tempo delicada, sensível, primorosa, eloquente e brutal, feroz, carnal e sensual. Tão poucos poetas de sua geração conseguem tão bem cambiar entre a literatura clássica e seus diversos formatos, estilos e movimentos, com a forma mais sintética, direta-no-ponto e pragmática da maneira contemporânea de expressão literária.
E é justamente por isso que sua obra merece tanto destaque.
Um poeta, artesão, músico, pintor, terapeuta, engenheiro dentre tantos outros dons, virtudes, aptidões e talentos. Um mundo artístico é esse artista no mundo.
Nosso "poeta, poetinha camarada" das noites de boemia poética, "Pelissa" como o conheci, é a personificação do que é arte. Um artista brilhante que vive a sua arte.
Prestes a lançar seu primeiro livro de poesias após mais de uma década de poesia, UM BOÊMIO CONFESSO E SUA POESIA é um livro produzido artesanalmente pelo próprio poeta e que será lançado de maneira independente. A obra apresenta mais de cem poemas, além de declarações, pensamentos, filosofia e pinturas e desenhos do autor - todo conteúdo de autoria exclusiva de Rafael Pelissari.
Ler as poesias, crônicas e pensamentos que compõem UM BOÊMIO CONFESSO E SUA POESIA me fez vislumbrar o requinte e zelo existente na escolha de cada palavra; a suavidade de uma retórica que ainda em devaneio nada soa além de sensatez e coerência; a sensualidade tão sexual, tão própria de um escorpiano, mas com romantismo e requintes de paixão e afago - uma volúpia quase que divinal; a elegância das rimas, métricas, das metáforas às metonímias, a ironia tão hiperbólica com raríssimos eufemismos, além de uma sinestesia tão aguçada que sua antítese é um inebriante paradoxo.
(Alguns trechos desta bio estão presentes no prefácio que fiz para UM BOÊMIO CONFESSO E SUA POESIA de Rafael Pelissari)
Abaixo deixo uma seleção de alguns poemas de Rafael Pelissari.
§
Bela!
Bela!
Referir-se a uma linda mulher por bela é digno
Lírico e nobre quanto literal
No teu caso,
Apenas um pleonasmo
§
Sobriedade
Amor,
Esta noite deixe a porta aberta
Preciso chegar mais tarde
Mais tarde
Preciso deixar pra mais tarde o
Mais tarde
Não voltarei tão tarde
Só tarde
Ainda que prometa voltar
Não prometo voltar só(brio)
Só voltar
Se voltar
Voltarei
Vol-tar-ei
Volta rei da saudade
Até mais tarde
A sobriedade
Só mais tarde
§
O porta-retratos
No porta-retratos
As imagens perfumadas
Das lembranças costuradas
De passados abstratos
No porta-retratos
Efígies irreconhecíveis
Dos sentimentos imiscíveis
E os fatos insensatos
No autorretrato
Espírito inexpressível
Ser-humano caricato
Trauma irreversível
O porta-retratos
De canto na bancada
Empoeira os relatos
De uma paixão arrancada
Faz doce o pretérito
O belo retrato
Da saudade um mérito
E da nostalgia um hiato
O porta-retratos
Não retrata o que já foi
Nem trata o imperfeito
Aliena um simulacro
E expõe tudo!
A dor
O amor
A saudade
Posto que a imagem
Em contradição com a vida
Permanece imóvel
Atrevida
E bem vívida num porta-retratos
§
Fome
Fiz-me como quem fez a fome
E roubei como quem tem fome
Sendo homem sem uniforme
Virei bicho, animal sem nome
Vou-me como quem some
Da aguardente que consome
Andarilho vadio de renome
Virei bicho! Animal sem nome
Entrego-me como quem subsome
Sem teto como quem não dorme
Abjeto traste não-conforme
Virei bicho de desprezível codinome
Mataram-me como quem come
Fustigados com ódio enorme
Como bicho - qualquer pronome
Jogado ali, morri de fome
§
Na minha casa
Na minha casa
E só na minha casa
As coisas são diferentes.
O Sol não entra pela janela
Quando nasce o novo dia
Ou abrasa quarto adentro.
O luzir se faz pela porta
Da perfulgência do teu ser
A invadir-me e afoguear-me.
És o Sol
És a Luz
É a vida que se irradia
Quando adentras meu quarto
Quando adentraste minha vida.
§
A tal da poesia
A tal da poesia
Pode ser um tanto exótica
Desperta a fantasia
Mesmo com matéria erótica
Provém da ousadia
D'uma visão até caótica
Num mar de euforia
E notas neuróticas
D'um poeta a sua cria
Em uma fuga narcótica
Até diante da agonia
Nas sombras com retórica
É a tal da poesia
§
Eu sou um boêmio confesso
Eu sou um boêmio confesso!
Alguns proclamam o seu amor
Outros delatam o seu terror
Eu só confesso o meu louvor:
Eu sou um boêmio confesso
Renuncie ao permanente
Fuja agora Carolina!
Dentre tudo o que é mutável
Eu só preservo a boemia
Estações mudam
Mulheres vêm
Anos passam
Mulheres vão
Eu sou um boêmio confesso
Eu jamais neguei
Tampouco te enganei
Me fez sofrer essa menina
Fuja agora Carolina!
Do amor sou abstêmio, confesso
Da dor costumeiro depresso
Sem ressaca nem flor de camomila
Se o que quero mesmo é gasolina
Estações passam
Mulheres mudam
Anos vêm
Mulheres vão
Eu sou um boêmio, confesso.
§
Caminho
I
Caminho caminhos e tempos perdidos
Percorro veredas fugindo das rotas
Assumindo nas culpas todas as cotas
Nas trilhas de amor e medo fundidos
O vale sombrio dos pecados rendidos
Deserto de cônscias orgias canhotas
Vultos! Fito jazigos de eras remotas
E sinto n'alma lamentos brandidos
Tenebrosos e vastos campos de algidez
Populados por impenitentes seres vis
Evocam na memória um certo país...
O déspota-líder dotado de rigidez
Ceifa corações com extrema avidez
Por não pelejar então vós caís.
II
Passando passados me quis invisível
Ao deixar esta horda sem questionar
Minha única escolha ante o alvar
A manter esta intacta alma sensível
Traçando esta rota de fuga plausível
Ante um coato exílio - contaminar
Cabisbaixo recosto em conjecturar
Na sede da corrosível água bebível
Maculado, abatido e perdido me prosto
Qual é a salvação dos anjos caídos?
- a vã penitência dos atos sofridos.
E "en passant" na tristeza eu aposto
De joelhos, sangrando ainda arrosto
Ah! Perdoa-me Senhor a falta de amigos...
IX
Renuncio a primavera como quem busca o perdão
E em gélida treva se transforma o meu ser
Abluo meu pobre espírito antes do alvorecer
Ainda é noite quando entrego-lhe meu coração
Anuncio e abnego o amor nesta minha paixão
Rendo-me ante os versos que me fazem esquecer
E aceito meu destino - quão belo é enlouquecer?
Assumo-me poeta fatídico ansiando a razão
Sei que dos meus versos nada germina
E na utópica teimosia de ser o que sou
Dos sonetos, nem sequer uma rima restou
Como hóstia suspiro poemas em cada esquina
Ofereço-me em partes e prosas na surdina
Nas inacabadas páginas que o inverno arrancou
X
Escorrem os pingos da chuva sagrada
E em meu rosto se misturam as lágrimas
Sofro exilado aos prantos e lástimas
Pela ruela vicinal nada iluminada
Mais uma página borrada mal-acabada
Do livro da vida repleto de vítimas
Cujas folhas em branco me são íntimas
As últimas, surradas, me fazem morada
Como interpretarão estas rimas esparsas?
De pensamentos avulsos com coesão
Dos ardilosos caminhos desta peregrinação
Quando ter-me-ei partido, ficarão as farsas
E eu e as traças, ante a vida, meros comparsas
Assim percebo que me preocupo em vão
§
Impermanência
Capturando os ventos do amanhã, é possível sentir o movimento da mudança, e isso depende muito de nós mesmos.
Conforme as nuvens se moviam bem distantes para o leste esta última tarde, transportando o mesmo céu azul vívido de hoje, para uma nova vida do amanhã, eu percebi a maneira como as coisas sempre foram.
E como permaneci acordado durante toda a noite que eu tinha a minha frente, agora tem sido. Eu vi diante meus olhos, dias se tornarem noites, os céus em movimento, tendo a certeza de que as estações irão mudar, e, o fato de que hoje não é somente o dia depois de ontem mas sim um novo e único dia, os raios de uma nova vida.
Repleto e completo por este sentimento de transitoriedade e consciente da magnitude do Cosmos, eu renuncio à toda e qualquer forma de violência e na permanência no agora.
Ainda, eu vejo o que já passou, portanto, eu não irei mais desperdiçar minha presença aqui neste planeta com qualquer coisa sem sentido.
Independentemente do que o amanhã me trará, eu aprendi com as ondas que batem nas rochas na praia, tanto quanto com a simplicidade da chuva caindo sobre meus ombros, com o pôr-do-sol, com a risada e o sorriso de uma criança ou com o companheirismo de um cão, o quão inútil é navegar contra a maré ou o vento, quando o vento em si pode ser uma ferramenta, um parceiro.
A primeira coisa a se fazer é parar de fingir, pretender e viver a vida que vem de dentro para fora, e quando nós aprendemos a pensar diferentemente acerca das mesmas questões que sempre nos afligiram, nós vislumbramos uma nova solução para qualquer questão ou problema que a vida possa nos apresentar; nunca é tarde demais, nunca é muito longe.
É tão claro quanto o dia, e de fato já é dia.
Em plena luz do dia, o esforço para ser livre é a única coisa que deve ser permanente.
© Direitos reservados ao autor
© Pesquisa, seleção e organização: Ekaterina E. Lutrova
Como citar:
LUTROVA, Ekaterina E. (pesquisa, seleção e organização). Rafael Pelissari: um boêmio confesso e sua poesia. Mundo da poesia, novembro/2018. Disponível no link. (acessado em .../.../...)


Rafael Pelissari no Boteco Poético (sem data)
(Rafael Pelissari é um dos fundadores do Boteco Poético e do projeto de popularização e propagação de cultura.)

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